Lisboa, política sem glória

(Pedro Levy Bismark, in Revista Punkto, 04/09/2025)


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Seria preciso encontrar um termo apropriado para o momento exacto em que um sistema deixa de ser capaz de dissimular e ocultar as suas próprias contradições. O «acidente» não é apenas o «milagre invertido», como dizia Paul Virilio, que expõe as fragilidades da tecnologia e do desenvolvimento: ele é o momento que expõe, na forma mais trágica possível, as contradições de todo um sistema político-económico. Está ainda, certamente, por fazer toda uma história do «acidente».

Deste ponto de vista, o «acidente» com o elevador da Glória não tem apenas um sentido simbólico, não é simplesmente uma metáfora, mas tem uma materialidade própria. É uma espécie de ponto de condensação onde se reúnem de forma catastrófica as consequências e os resultados das políticas económicas neoliberais que uma cidade como Lisboa tem seguido nos últimos anos: (1) externalização dos serviços de manutenção, isto é, privatização da manutenção da Carris e dos serviços públicos, isto é, precarização das condições de trabalho e obliteração das cadeias de transmissão de saber técnico (como realçava Paula Godinho num texto publicado no Facebook); (2) corte de financiamento da Carris (no ano de 2024) e a aparente transferência de uma considerável verba do orçamento desta empresa para apoiar esse megaevento que é a Web Summit e, portanto, a degradação dos serviços públicos essenciais, da infra-estrutura básica da cidade, à custa do nacional-deslumbramento dos grandes eventos unicórnicos e da grande epopeia do marketing das cidades-marca e das best destinations.

A idealidade absurda do neoliberalismo financeiro que Moedas representa é a cidade-Potemkin: puro fachadismo, pura encenação de si mesma. Cidade sem conteúdo, cidade reduzida a forma pura da sua rentabilidade económica.

E, por isso, a política da privatização (neoliberal) é, antes de mais, a política de externalização sine die dos custos políticos e sociais (e, por isso, pode Moedas não se demitir, ao contrário do que fez Jorge Coelho aquando da queda da ponte de Entre-os-Rios).

O «acidente» do Elevador da Glória é, de facto, o «acidente» da Lisboa neoliberal: mas este deve ser visto, igualmente, como sintoma de burnout, sintoma de uma cidade em burnout, porque há, paralelamente à falta de manutenção, a questão da intensidade e da violência do uso de uma infra-estrutura que deixou de conseguir responder ao uso massivo que dela é exigido: justamente, o uso massivo de uma actividade turística que hoje tomou conta do centro da cidade de Lisboa, que devora e coloniza inteiramente a cidade. E, portanto, o «acidente» dá-se no centro, numa das zonas fundamentais de confluência e concentração do turismo de massas e atinge, justamente, um dos «ícones», uma das «representações» fundamentais da Lisboa-turística e da sua ideologia.

O «acidente» revela, assim, de forma tão abrupta, a materialidade social e económica que suporta a frágil encenação fachadista da Lisboa requalificada, da Lisboa cosmopolita, da Lisboa alegre, para expor a condição de uma cidade (como tantas outras) reduzida à pura condição de Luna Park, constituída por infra-estruturas degradadas e sobrecarregadas, uma cidade explorada intensivamente até ao ponto do seu colapso por uma especulação imobiliária animada pela utopia do crescimento sem fim do turismo e da reprodução mágica do capital financeiro. Neste sentido, devemos ver a impecável cor amarela dos elevadores como a superfície-ideológica que dissimula a degradação absoluta dos componentes que constituem a infra-estrutura oculta do funicular. A importância catastrófica do «acidente» na política moderna é justamente essa: o «acidente» é o momento em que o reprimido (a infra-estrutura) aparece de forma violenta na linguagem dissimulada da ideologia política (a superestrutura).

O «acidente» do Elevador da Glória é o «acidente» do neoliberalismo e das suas instituições: externalização, privatização, rentabilidade absoluta de tudo e todos até ao ponto iminente do colapso. Dizia alguém que a arte da política é a mentira. Ora, o «acidente» é o ponto trágico em que a verdade aparece enquanto tal. Todas as políticas têm custos e o «acidente» é, justamente, a forma política em que o custo aparece. Para a lógica política da contemporaneidade a fórmula só pode ser uma: quanto maior o «acidente», maior a mentira.

Fonte aqui

9 pensamentos sobre “Lisboa, política sem glória

  1. E que é feito deste meco que agora anda em modo stealth? Ainda no outro dia andava a promover uma candidata autárquica a fazer campanha de rua, dizendo que lá estava como dirigente do partido e não como ministro. Estranho não aparecer na formação de Power Rangers enlutados, no lugar do Ministro da Defesa (do Atlético Norte)… mas enfim, tinham de pôr lá um do parceiro de coligação, que ressuscitaram com a AD.

    https://www.portugal.gov.pt/pt/gc24/area-de-governo/infraestruturas-e-habitacao/ministro

    https://observador.pt/2025/09/01/miguel-pinto-luz-elogia-plano-de-suzana-garcia-para-erradicar-barracas-na-amadora-ate-2030/

  2. Excelente reflexão que faz lembrar um artigo que Caitlin Johnstone publicou há dias. É sobre Gaza, outro grande “acidente”, mas isto anda tudo ligado. Aqui fica a tradução:

    A civilização ocidental não merece ser salva. Creio que isso já foi amplamente demonstrado até agora.

    Uma das coisas mais absurdas é a forma como os direitistas estão sempre a falar sobre como precisamos de proteger o nosso modo de vida dos imigrantes, do Islão, da “agenda trans” ou seja lá o que for. Eles partem do pressuposto de que esta sociedade, que é um verdadeiro descarrilamento, vale a pena ser salva.

    Não estou a dizer que os ocidentais devem morrer. Não estou a dizer que todos os ideais e valores que os ocidentais dizem defender são inúteis. Estou a dizer que esta civilização, tal como ela realmente existe, é um desastre indefensável. Claramente.

    O nosso modo de viver neste planeta. A forma como nos tratamos uns aos outros. A forma como tratamos as pessoas noutros continentes. Todos os sistemas e estruturas sociais que dão origem ao modo como as coisas são. Estas coisas não deveriam existir. Não deveríamos ser como somos.

    Esta civilização é genocida. Ecocida. Omnicida. Imperialista. Racista. Desumanizante. Degradante. Distópica. Emocionalmente atrofiada. Culturalmente vazia. Espiritualmente empobrecida. Intelectualmente escravizada. Por que razão qualquer pessoa sã quereria que isto continuasse?

    Não precisamos de salvar a civilização ocidental de forças externas, precisamos de nos salvar da civilização ocidental.

    Se escutarmos os nossos corações, podemos compreender que o apelo não é para salvar a civilização ocidental da corrupção por culturas estrangeiras ou novas formas de pensar, mas para a transformar radicalmente do pesadelo assassino, tirânico e opressivo que ela sempre foi.

    O modo de vida ocidental não precisa de ser preservado, precisa de acabar. Não podemos continuar a fazer isto. Não podemos prosseguir assim. Não podemos continuar a envenenar o nosso planeta, as nossas mentes, os nossos corações e as nossas almas com a ideologia McGenocida do império ocidental. Estamos a dirigir-nos para um lugar sombrio, um lugar onde nenhum de nós quer estar, e precisamos de dar meia-volta.

    Nada no nosso velho modo de fazer as coisas funcionou para nós. Tudo o que estivemos a fazer antes acabou por nos trazer a este ponto terrível. Não precisamos de recuar, e não precisamos de ficar parados. Precisamos de evoluir.

    Gaza é um espelho. Está a mostrar-nos o que somos. O que sempre fomos.

    É a hora de sermos honestos sobre o que estamos a ver.

    https://caitlinjohnstone.com.au/2025/08/29/western-civilization-is-not-worth-saving/

  3. Sem querer desviar o epicentro do “acidente”, e indo à estrutura ontológica e simbólica do artigo, que tem uma incidência fenomonelógica, podemos também falar dos “acidentes” típicos (para não entrar em classificações mais profundas) do epicentro do neoliberalismo enquanto fenómeno mundial, não-local, porque no fundo Portugal não passa de um pequeno componente (e satélite) periférico e adjacente, dessa realidade política e económica, que é o neoliberalismo internacional, do chamado “ocidente alargado”,

    No EUA, “a maior super-potência do mundo”, nas palavras de todos os que comungam o pensamento do Presidente da República, também pela sua dimensão estrutural, além de ser o “centro de massa”, chamemos-lhe assim, do neoliberalismo enquanto entidade política institucionalizada como oficial, federalmente, a nível da NATO, e também da UE, o “acidente” costuma ser muito mais frequente e tão ou mais mortífero, e não resulta propriamente de consequências do erro humano, são crimes intencionais e dirigidos: falo, como é fácil de entender, “dos tiroteios”, frequentemente em escolas, mas também um pouco por todo o lado, em superfícies comerciais, nas ruas, por vezes com ataques com alvos específicos. Estes eclodem um pouco por toda a União, envolvem menores, maiores, gente de todas as origens. Como o acesso às armas é facilitado e vulgar, usá-las em causa própria ou alheia também se torna frequente.

    Este é o modelo que querem importar para a Europa, ou uma das suas facetas; “rearmar a Europa”, a corrida às armas. Outra faceta é a que o texto refere explicitamente, sem lugar para equívocos. É pena é haver tantos pategos a irem em contos do vigário. E El Chapas, ou Carlos 30 Moedas, sempre foi um. E a ladaínha sempre foi a mesma, “os unicórnios”, “a elitização”, “o mercantilismo”, “a contabilidade”…

    É por isso que este texto toca vai à medula da questão, e expõe “a mentira”, e as suas manifestações.

    • Também foi por esse tipo de “acidentes” típicos no epicentro do neoliberalismo enquanto “superestrutura” internacional, trans-continental (entre muitos outros, como 20% da população reduzida à pobreza, o nível de adicção às drogas pesadas, os números relativos e absolutos de população encarcerada no “sistema prisional”, etc), que os “grandes líderes” dos EUA começaram a ficar chechés, como tivemos o exemplo flagrante na administração Biden, com a gradual degeneração da capacidade cognitiva e do seu intelecto.

      Aos primeiros “acidentes” (leia-se tiroteios com múltiplas vítimas mortais e não só), lá ia Joseph Biden e a Primeira Dama ao local, depositar uma coroa de flores, nos seus trajes e poses de “luto”, “condolências” e “consternação”. Mas à medida que os “acidentes” se sucediam, às vezes no espaço de uma semana, quinze dias, ou menos, e das aparições do hiPOpoTamUS branco e sua esposa, ambos “consternados”, o suplício tornou-se mais intenso e a prática acabou por ser esquecida, abandonada, e até mesmo a nível noticioso se passou a dar menor destaque aos “acidentes” (tiroteios…)…

      Por cá também já se começam a notar os sintomas e sequelas do objectivo de tornar o sistema tão maquinal quanto impessoal… e tão proveitoso para alguns “iluminados” como perigoso para qualquer cidadão comum. E como estamos na era da propaganda para pategos sem pudor algum…

    • E ainda temos o “preço político” das frequentes quedas das pontes, muitos por má concepção estrutural ou falta de inspecção e manutenção, além de outras infra-estruturas, os colapso em zona de exploração mineira de vias e infra-estruturas, os descarrilamentos de comboios, as quedas de aviões (tidos como o meio de transporte mais seguro do mundo), etc…

      Para além dos já referidos (armamentismo, belicismo, externalização/privatização das infraestruturas críticas ou da sua manutenção, taxas de pobreza da população, de adicção a drogas duras, de encarceramento no “sistema prisional”, em números relativos mas também em absolutos, da esperança média de vida, etc)…

      Enfim, eis o “sonho luso-americano”, do “admirável mundo livre”… desde que em cada esquina abra um Subway, em cada travessa Starbucks, em cada rua um McDonalds, em cada avenida um Burguer King ou uma Pizza Hut, em cada praça um KFC… presumo que vão continuar a chamar a isto “desenvolvimento e progresso”…

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